Opinião | 04-05-2024 19:19

Debaixo D'água em Porto Alegre (primeira parte)

Debaixo D'água em Porto Alegre (primeira parte)
foto Carta Capital

A cidade de Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul, vive momentos dramáticos com o rio Guaíba a sair do leito e a causar uma centena de mortos e desalojar milhares de famílias numa enchente que já ultrapassou todos os recordes.

Na quarta tentativa a natureza venceu e Porto Alegre está à mercê das águas do rio-lago-estuário Guaíba. O governador está mobilizado e carrega em seu semblante a angústia de quem sabe que a sua candidatura à presidência pode estar indo por água abaixo, com o perdão da alegoria. O descaso da coisa pública está estampado nos efeitos potencializados deste fenômeno da natureza e começa pelo mal funcionamento dos portões, intercalados através do ‘Muro da Mauá’, que tiveram que ser acionados manualmente e alguns deles não suportaram a carga da pressão das águas. Uma casa de bomba no Centro Histórico não foi fechada no devido tempo e quando tentaram fechá-la a pressão da água tornou isso impossível. A natureza segue seu próprio caminho e a civilização é uma “excrecência desnaturada” diante das forças naturais desencadeadas e a grande ilusão humana de controlar as forças naturais há muito tempo caiu por terra e agora começa a ser completamente submersa pelas águas.

Rui Barbosa defendia a ideia de que a interferência do homem no meio ambiente traria sérias consequências e isso está completamente confirmado. Cada morro retirado, cada aterro, cada alteração na ordem natural das coisas, que foi feita através de milênios, traria efeitos imprevisíveis para a humanidade, mas os mandatários da civilização são incansáveis em destruir tudo. Rui Barbosa desapareceu em 1923 e não viveu, portanto, a Era Atômica, porém já percebia naquele tempo que em cada morro retirado para construir uma rua ou estrada alteraria a direção dos ventos, das águas, enfim, dos vários elementos que compõem o frágil equilíbrio do meio ambiente e isso em algum momento teria um preço, um alto preço para a humanidade, aliás. Porto Alegre já teve um porto pujante e eu, quando muito criança, assistia da janela, do Edifício Cacique na Rua da Praia, o incessante trabalho dos seus guindastes carregando e descarregando navios. O porto definhou da mesma forma que as ferrovias foram abandonadas no país, seguindo interesses não públicos e sim de uma minoria que controla a sociedade.

Um país com uma classe dirigente voltada apenas para os seus lucros, somado a alienação da maioria, cria situações como essa e coisas que funcionam bem, mas que deveria ser aperfeiçoadas, são abandonadas e trocadas em função de negócios que beneficiam, apenas, os grandes interesses capitalistas. No caso das ferrovias a escolha foi investir em rodovias e caminhões e a cada dia se confirma o erro dessa escolha. Ela foi movida pela alta lucratividade que estradas, caminhões e todas as estruturas que se constrói ao longo das rodovias geram, nunca se levou em conta o todo, jamais se teve uma macrovisão para o desenvolvimento desse país. As tragédias que se sucedem em períodos cada vez mais curtos criam muito sofrimento, principalmente aos mais pobres que estão colocados em lugares que são atingidos, primeiramente, pela reação das forças naturais. Este é o quarto evento climático sucessivo em Porto Alegre e em menos de um ano, assim mesmo a cidade não evoluiu desde o primeiro desastre no sentido de criar melhores condições para o enfretamento das novas tragédias anunciadas.

A histórica enchente de 1941 já foi superada e a tragédia que se estende pela cidade não deixa nenhuma dúvida sobre a incompetência e o dessintonia dos dirigentes e gestores do setor público. O prefeito, que tentará a reeleição ainda este ano, e o governador, o primeiro a ser reeleito no estado, se mostram como realmente são na atual situação enfrentada, discursos vazios e apelos emocionais para que o foco principal das críticas passe a lo largo deles. Um exemplo nefasto da ação do governador é a alteração em 480 pontos do Código Ambiental do estado. O dirigente da AGAPAN-Associação Gaúcha de Proteção ao Meio Ambiente, Franciso Milanez, afirmou que isso representa um retrocesso sem precedentes de uma conquista que começou no anos 50, com Henrique Roessler, e seguiu nos anos 70 com José Lutzenberger. O Código levou 9 anos para ser elaborado depois de intensos debates, mas a mutilação das leis, em 2019, visou unicamente favorecer os empresários que apoiam dirigentes neoliberais, como Eduardo Leite, inclusive em alguns casos, as mudanças concedem aos empresários o auto licenciamento, ora, isso é como nomear raposas para cuidar do galinheiro, além de não haver nenhuma justificativa científica para o que foi feito.

O número de mortes e desaparecidos não para de crescer e ultrapassará rapidamente uma centena, porque os desaparecidos, em sua maioria, se somarão a esse nefasto numeral em constante crescimento. Vidas não são recuperáveis e os dirigentes e gestores sabe que contarão com ódio eterno das pessoas que perderam entes queridos em mais uma tragédia, onde é visível a participação negativa do setor público. As pessoas estão cada vez mais impacientes e já não são tão ingênuas como antigamente. Haja vista a situação de Bolsonaro, que enganou milhões de pessoas pobres com o seu discurso populista, mas acabou retirando delas direitos previdenciários duramente conquistados. As consequências reais dessa desgraça estão se desenhando a nossa frente e não há mais espaço para não tolerar as ações de políticos que nunca respeitaram nada, além dos seus próprios projetos políticos e pessoais.

Vinicius Todeschini 04-05-2024

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