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Não é por uma pessoa ser tratada por doutora que é mais competente
Vítor Carola é um rosto conhecido de Alverca e da Póvoa de Santa Iria onde é professor de História

Não é por uma pessoa ser tratada por doutora que é mais competente

Vítor Carola é ex-autarca e professor na Póvoa de Santa Iria.

Vítor Carola foi operário, autarca em Alverca do Ribatejo, presidente da Assembleia Municipal de Vila Franca de Xira, deputado do PS, dirigente associativo e vogal da Oikos, organização de cooperação e desenvolvimento. É professor de História e presidente do Conselho Geral do Agrupamento de Escolas da Póvoa de Santa Iria. Nesta entrevista fala dos bastidores da política, defende que as escolas não existem para tomar conta das crianças e acredita que a descentralização de competências na área da educação é um risco que poderá compensar para o município.

É um apaixonado por História e pelo ensino. A culpa de haver maus alunos é dos pais?

É injusto dizer isso porque há pessoas com uma vida muito difícil. Por vezes saem de casa às 06h00 e chegam às 20h00. As famílias não têm todas a mesma possibilidade de se desenvolver, quer do ponto de vista económico quer no amor familiar. Às vezes a amargura é maior que o amor. As dificuldades económicas e o chorar à procura de soluções marcam as pessoas. A escola é um espaço de ensino e aprendizagem. Mas muitos pais ainda pensam que só serve para tomar conta dos meninos. Não é essa a nossa função. Não somos um centro de convívio. Esse convívio acontece nas actividades da escola mas não é o propósito da nossa existência. Cada vez há mais situações de indisciplina e conflitualidade nos jovens e uma menor capacidade para respeitar o outro.

É então culpa dos professores...

Somos culpados de nos preocuparmos com os outros, de ver o que sabem, se sabem estar, se gostam e sabem ler, se são capazes de distinguir duas ideias contraditórias, se são capazes de afirmar uma posição e uma opinião divergente ao mesmo tempo que respeitam os seus pares. Isto aprende-se mas é algo que sentimos que eles trazem cada vez menos de casa. Os miúdos passam muito tempo sozinhos. Dar uma máquina de jogos ou um tablet aos filhos entretém mas não os educa.

Acabar com os trabalhos de casa resolvia o problema da falta de tempo com os pais?

Não. O défice de resultados tem a ver com a ausência da disciplina do trabalho. As aulas só não chegam e os programas são extensos. Não há injecções de saber para dar aos alunos, eles têm de trabalhar para obter resultados. Um professor pode ser excelente mas se o aluno não quiser aprender é impossível ter sucesso. Um aluno tem de gostar de ler e esboçar um sorriso ao ter oportunidade de ler poesia ou um conto. Temos de fazer um esforço maior nas idades mais precoces para que eles percebam a riqueza da leitura.

Sem leitores de futuro até os jornais estão ameaçados...

Sem dúvida. Embora jornais como O MIRANTE, que têm uma apetência para as notícias regionais, façam a diferença e ofereçam as vivências que os leitores querem ler, ao contrário dos nacionais. Mas mesmo assim corremos o risco de essa importância se ir dissipando no meio desta tendência crescente de se desvalorizar o que está no papel. O digital é que é bom e isso é um perigo. E é errado. Os mais jovens ainda têm muita incapacidade para discernir o que é verdade e o que não é.

Sendo professor, como olha para a sociedade actual, que trata todos os licenciados por doutores?

Tratar por doutor ou engenheiro é mais uma questão de posição social do que outra coisa. Não é necessária. Instituiu-se ao nível dos organismos que haja essa diferenciação das demais pessoas, talvez para dar algum cunho de liderança e distinção. Mas para mim não é determinante. A ideia de fazer uma distinção social pelo título da pessoa é um bocadinho arcaico. Não é por uma pessoa ser chamada de doutora que é mais competente que outra qualquer.

Vila Franca de Xira é dos primeiros concelhos da região a aceitar a transferência de competências na educação. É uma aposta ganha?

É um risco. Vamos ver como corre. A câmara tem feito um excelente trabalho na educação. Acredito que esta decisão pode ter vantagens mas também desvantagens. Uma das desvantagens é o Estado se ir desresponsabilizando das coisas. É excessivo o Estado ficar isento de intervenção em alguns sectores. Além disso, corremos o risco de vir a ter formas diferenciadas de intervenção e tomadas de decisão radicalmente diferentes nos vários pontos do país. Com o tempo é possível que tudo se venha a harmonizar. Quero acreditar que esta experiência de Vila Franca de Xira poderá ser um balão de ensaio para o país.

Com os consequentes riscos...

Reconheço às pessoas da câmara um envolvimento e um amor ao município que as leva a dizer o que genuinamente pensam. Toda a gente quer que esta experiência corra bem. Para mim o mais importante é que o processo de acompanhamento seja feito de forma muito criteriosa, para se detectar e resolver as situações mais frágeis mas sobretudo para que, caso de chegue à conclusão que a descentralização não resultou, se tenha a coragem suficiente para reverter a decisão.

Envolveu-se cedo na política. Tem gostado do que tem visto?

Até agora sim, o Alberto Mesquita provou ser um bom sucessor da Maria da Luz Rosinha. Ela foi marcante no concelho, porque a figura do Daniel Branco era importante e a Rosinha veio marcar uma viragem completa. Desde o 25 de Abril que havia gestão da CDU em Vila Franca de Xira. Havia uma gestão à base do capital de queixa, era sempre preciso uma reivindicação. Isso acabou, passou a haver uma atitude mais pró-activa. Houve uma forma diferente de comunicar com o poder central e de gerir a câmara. É de destacar também a forma firme e lúcida como Mesquita tem gerido a câmara e foi inteligente nunca se ter desligado da figura da Maria da Luz.

Mas nem tudo são rosas e ainda existem problemas.

É preciso melhorar as acessibilidades e a ligação com o rio. Alverca tem um problema terrível, que é estar longe do rio. Isso não pode acontecer. Essa ligação tem sido feita no concelho mas nós continuamos à espera, temos a barreira das pistas da Força Aérea. E é preciso também melhorar os equipamentos básicos e aproximar mais as pessoas da cultura. Dar mais força à Filarmónica de Alverca, à Euterpe de Alhandra ou ao Ateneu de Vila Franca de Xira, que são gigantes na sua capacidade de intervenção cultural e pedem meças a outras no país. Podiam fazer melhor com mais condições.

Ainda há gente que nunca viu uma lâmpada acesa

O ex-autarca e professor foi também, desde 2004 e até ao último ano, vogal do conselho directivo da Organização Não Governamental Oikos, que promove a cooperação e o desenvolvimento por todo o mundo a fim de melhorar a vida das populações, por exemplo, em Angola ou Moçambique. “Há milhões de pessoas que nunca viram uma lâmpada acesa. Gente que nunca viu um computador, não sabe o que é a Internet nem tem o mínimo indispensável para viver. O maior problema que vamos ter no futuro é a questão ambiental, ainda que as pessoas o desvalorizem. A falta de água será uma verdadeira bomba atómica. Toda a gente irá à procura dela e fará de tudo para a ter”, antevê.

Um escuteiro apaixonado por jazz e Pink Floyd

Vítor Carola nasceu a 22 de Maio de 1959 em Alverca, onde vive. É professor de História e sportinguista. Fez parte da patrulha fundadora do agrupamento 317 dos escuteiros de Alverca, a que ainda está ligado. Na vida associativa foi presidente da assembleia geral (2002-2010) e membro do conselho fiscal (2011-2017) da AIPNE – Associação para a Integração de Pessoas com Necessidades Especiais - de Alverca e foi presidente da mesa da assembleia geral da Associação de Assistência e Beneficiência da Misericórdia de Alverca de 2006 a 2017. Em 2007 recebeu o galardão de mérito autárquico da Junta de Alverca. Este ano, nas comemorações do 25 de Abril, foi distinguido com a medalha de honra do município.

Tocar guitarra é um dos seus vícios, que aprendeu sozinho a ver outros músicos em palco. Confessa ter sido “atropelado” pelo álbum “The Dark Side of the Moon” dos Pink Floyd, em 1975, e nunca mais largou a música da banda britânica.

Ultimamente está a apreciar jazz. “Kind of Blue”, de Miles Davis, foi o seu ritual de iniciação jazzístico. Diz que dificilmente teria sido militante de outra força política que não o PS. “Gosto de trocar ideias, saber, conhecer e ter esta ideia de que posso ser útil e dar o meu contributo aos demais para que as coisas aconteçam da melhor maneira”, conta. No ensino fez o curso geral de electrotecnia mas a História sempre foi a sua disciplina preferida. Começou a trabalhar como operário não especializado na Eurofil, uma empresa de plásticos reforçados, já falida. Depois foi escriturário na ADP Fertilizantes e foi aí que voltou aos bancos da escola. Conseguiu entrar na Faculdade de Letras e fez-se professor. Tira-o do sério a desfaçatez, inveja, a incapacidade para perceber o outro e a ignorância.

Ainda tem sonhos por concretizar e falta-lhe reler a obra completa de José Saramago. “E ler a sério o Livro do Desassossego e ser capaz de ler, que é mágoa que tenho, o Ulisses de James Joyce. Nunca consegui passar da página 20”, confessa com um sorriso.

É preciso acabar com a política do folclore

Vítor Carola foi eleito pelo Partido Socialista e integrou a Assembleia de Freguesia de Alverca entre 1990 e 1997. Foi presidente da Assembleia Municipal de Vila Franca de Xira entre 1997 e 2004 e em finais de 2000 foi durante 45 dias deputado à Assembleia da República. Tomou posse no dia em que foi aprovado o chamado “orçamento limiano”. Há vários anos que está afastado das lides políticas por questões de saúde.

Diz a O MIRANTE que ao nível das freguesias contam mais as pessoas do que os partidos. O importante, defende, é que as necessidades das pessoas sejam acauteladas. “É um sinal de inteligência cívica verificar se as coisas necessárias a uma comunidade são providas em tempo útil e resolvidas. Nem sempre as decisões são tomadas em tempo útil para as pessoas perceberem se foi uma boa opção”, defende.

Reage com bonomia a quem generaliza que os políticos são todos aldrabões e corruptos. “Os políticos são cidadãos genuinamente interessados em que a coisa pública funcione o melhor possível. A motivação de qualquer político é servir. É tomar decisões e antecipar problemas. Mas essa dinâmica nem sempre é bem compreendida pelas pessoas”, lamenta.

Vítor Carola é um optimista por natureza e confessa que não gostou de alguns episódios nos bastidores da política. “Não gostei de algumas disputas partidárias que eram apenas para o folclore, gente a marcar posição para ter efeitos ao nível da opinião pública. Era uma perda de tempo. Mas as pessoas já vão percebendo o que é folclore e o que não é. Vão sabendo distinguir o que é essencial do que é acessório. Não digo que haja promiscuidade mas há dependência quase feudal em algumas estruturas que leva a que se gerem facções dentro de alguns partidos que depois acabam por fugir ao espírito mais democrático dos partidos. Mas os partidos não são escolas de virtude, a sociedade é que é”, analisa.

Não é por uma pessoa ser tratada por doutora que é mais competente

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