Sociedade | 15-04-2024 18:00

Maior desenvolvimento de Fátima no pós-25 de Abril desmente ligação ao Estado Novo

Maior desenvolvimento de Fátima no pós-25 de Abril desmente ligação ao Estado Novo
Director do Departamento de Estudos do Santuário, Marco Daniel Duarte, defende que a relação de Fátima com o Estado Novo exige uma investigação

A relação de Fátima com o Estado Novo exige uma investigação que ainda não está totalmente feita, considera o director do Departamento de Estudos do Santuário referindo que há que “dizer de forma muito clara que Fátima não é igual a salazarismo”.

A ideia de uma ligação profunda entre Fátima e o regime do Estado Novo é desmentida pelo director do Departamento de Estudos do Santuário, que aponta o pós-25 de Abril como o período em que “Fátima se desenvolve mais”. Para Marco Daniel Duarte, “a relação de Fátima com o Estado Novo exige uma investigação que ainda não está totalmente feita”.
“Aquilo que é o mais fácil para a narrativa que tem sido criada é que Fátima e o Estado Novo são quase a mesma coisa. Há, inclusivamente, uma narrativa mitográfica que diz que Fátima é construída pelo Estado Novo. Ora, tudo isto exige que haja, de facto, uma investigação séria”, defende à agência Lusa.
Desde logo porque “Fátima nasce no contexto pré-Estado Novo, num contexto de I República, (…) de um Portugal que é claramente anticlerical, que tem muitas dificuldades em assumir uma mensagem religiosa”, afirma o historiador, lembrando que os patriarcas do republicanismo diziam que “em poucas gerações o catolicismo seria erradicado do país”.
Admitindo que o catolicismo encontra um espaço de maior conforto para a expressão da fé durante o Estado Novo, diz não ser de admirar, por isso, que “a historiografia tenda a dizer que Fátima cresce de uma forma muito considerável no período” da ditadura de Salazar.

Salazar pouquíssimas vezes foi a Fátima

No entanto, adverte, há que “dizer de uma forma muito clara que Fátima não é igual a salazarismo. Aliás, o próprio presidente do Conselho, António de Oliveira Salazar, pouquíssimas vezes veio a Fátima. Veio nos anos 50, numa visita que nem sequer era oficial, e veio depois em 1967 aquando do cinquentenário das aparições com o Papa Paulo VI”.
“O poder político não frequenta Fátima de forma assinalável. Há momentos muitíssimo importantes em Fátima relacionados com episódios soleníssimos e não é o chefe de Estado nem é o chefe do Governo que vem a Fátima”, lembra Marco Daniel Duarte, apontando o exemplo de 1946 quando “a imagem de Nossa Senhora de Fátima é coroada como Rainha do Mundo e Rainha da Paz e vem um legado pontifício do Papa Pio XII” ao Santuário.
Nesse dia, “nem Salazar nem o chefe de Estado estão em Fátima. Aquilo que vemos acontecer é, até no período pós-25 de Abril, a presença do Estado e a presença de ministros, porventura até mais detectável do que propriamente no Estado Novo”, acrescenta.
E apesar da trilogia “Fátima, Futebol e Fado” que se tornou popular para caracterizar o Portugal das décadas anteriores à revolução de 1974, Fátima não deixava de causar algum incómodo no poder instalado. A guerra nas antigas colónias de África e o palco que Fátima constituía para alguma crítica, causava desconforto.

Vozes contra a guerra colonial
“Os anos 60 são muitíssimo ricos na expressão que Fátima também tem de contrariar aquilo que é a decisão política ao mais alto nível, nomeadamente em relação à questão do Ultramar (…) e da guerra”, sublinha Marco Daniel, lembrando que se vêem “os fiéis a virem a Fátima pedir que termine a guerra, que os soldados não sejam mobilizados para a guerra”.
“Vemos isto a partir de várias vozes: em primeiro lugar, a partir dos próprios soldados, os militares que (…) vêm a Fátima pedir a protecção da Virgem para a sua missão no Ultramar, vêm também doentes e soldados mutilados agradecer o facto de terem sobrevivido à guerra e isto são, obviamente, manifestações muito claras de que Fátima é palco de uma reivindicação, de uma contestação em relação a esta guerra que levava à morte milhares de inocentes”, frisa o director do Departamento de Estudos do Santuário.
Para o responsável, “estas vozes que se fazem ouvir em Fátima não são apenas as vozes dos soldados, são as vozes dos pregadores, dos padres que aqui têm discursos pró-pacifistas, a voz das madrinhas de guerra, dos filhos de soldados, das noivas dos soldados, que aqui deixam as suas mensagens (…) que ainda hoje são fontes inestimáveis para perceber um período da história portuguesa”.
“Nós vemos aqui, de facto, essa contestação silenciosa de Fátima ser um abrigo para estas angústias da Humanidade nesta época”, diz o historiador. Havia a percepção de “que o regime sentiria, por um lado, algum desconforto, no sentido em que há aqui um palco onde vemos soldados a rastejar na passadeira dos penitentes com as suas fardas, portanto, uma paisagem humana muito difícil de perceber, que não é uma paisagem humana que apareça nos jornais de forma muito clara, mas, ao mesmo tempo, olhava para Fátima como lugar [onde] ‘eles vão fazer as suas orações’, quase que não é nada político”.
Mas, argumenta, “há aqui uma dimensão que não é apenas religiosa, é fundamentalmente também política”. E sendo política, como era o controlo feito pela polícia do regime em Fátima? “Não temos evidência desse tipo de controlo”, o que pode ser explicado pela sensação de que, “para a PIDE, não pareceria óbvio que em Fátima acontecesse algo que contrariasse a voz do regime”, acrescenta.

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