Entrevista | 30-04-2024 15:00

GNR está afundada em burocracia e a perder a sua condição militar

GNR está afundada em burocracia e a perder a sua condição militar
José Pereira fez carreira na GNR e foi comandante do posto de Samora Correia até passar à reserva, em Fevereiro

José Pereira fez carreira na GNR e fixou-se em Samora Correia, onde foi comandante do posto. Visto por colegas e população como mediador de conflitos e bom ouvinte, saiu da instituição e passou à reserva em Fevereiro. Quando começou na extinta Guarda Fiscal ainda se escrevia à máquina mas hoje os militares da Guarda estão imersos em burocracias.

A Guarda Nacional Republicana (GNR) está a caminhar para o esvaziamento da condição de militar e a passar para o funcionalismo público. A afirmação é de José Pereira, sargento-ajudante que deixou a função de comandante do posto de Samora Correia aos 55 anos e passou à reserva a 20 de Fevereiro.
O militar nasceu e foi criado na Orca, uma aldeia do Fundão. Como o pai era emigrante em França passava lá as férias grandes. Tirou o curso profissional de electricidade e chegou a trabalhar como electricista. Numa altura em que as perspectivas de carreira eram poucas concorreu à Guarda Fiscal (entretanto extinta), quando ainda estava na tropa, e entrou.
No início de carreira foi colocado na Ericeira e ia e vinha todos os dias para Vialonga, onde já vivia com a esposa. Tinha 22 anos quando a filha nasceu e com quatro anos de carreira na Guarda Fiscal fez o curso de cabos e foi colocado em Samora Correia, uma terra da qual nunca tinha ouvido falar. As condições do posto antigo da GNR eram péssimas. Mas Samora Correia era sossegada e não tinha o trânsito das grandes cidades. José Pereira fixou-se na freguesia com a família e nunca mais saiu.
Ao longo da carreira, enquanto comandante da GNR em Samora Correia, a maior satisfação que tinha era quando conseguia resolver o problema das pessoas que batiam à porta do seu gabinete, sempre aberta, a qualquer dia e hora. Era assim que se sentia útil, até porque considera que a Guarda ganha em ter pessoas de referência em determinados cargos, como o de comandante. Se for reconhecido como mediador de conflitos ainda melhor. “Tive situações de guardas que me ligavam às onze da noite a pedir para conversar, com problemas pessoais. Ia ter com eles fora do posto e falávamos. Ouvir as pessoas é muito importante”, conta a O MIRANTE.
Na memória relembra o caso de um senhor que queria escrever no livro de reclamações para contestar um auto. As ordens que os militares tinham era que ninguém devia escrever no livro sem falar directamente com o comandante do posto. E assim foi. No dia seguinte o queixoso estava à porta do posto da GNR de Salvaterra de Magos, onde José Pereira chegou a estar colocado, com o auto na mão. “Veio com o papel na mão e eu interrompi-o e disse: já tomou café? Estivemos uma hora a falar da vida de um e outro e quando disse para tratarmos da reclamação o senhor dobrou o papel e disse que não tinha nada a reclamar. E da próxima vez que passasse na rua para o avisar, que me pagava o café. As pessoas têm problemas no dia a dia e basta uma multa que rebentam, porque precisam de desabafar. E os guardas não são indiferentes a isso”, diz.

Casos marcantes
José Pereira decidiu passar à reserva, não por sentir que estava a mais, mas por achar que estava na hora de ter mais tempo para si e para a família. Quando iniciou a carreira costumava dizer que a GNR lhe tinha dado tudo, mas passados estes anos garante que os militares dão muito mais à instituição do que recebem em troca. Quando a filha nasceu estava de serviço, trabalhou fins-de-semana, noites e horas extraordinárias.
“A Guarda mudou do oito para o 800. A parte psicológica a que somos sujeitos, sobretudo quem comanda homens e tem responsabilidade, é grande. Quando vim para cá ainda escrevia à máquina. Hoje existe um conjunto de plataformas em que o general consegue ter acesso a um acidente, por exemplo, quase em tempo real. E eu comecei a entrar numa fase de cansaço com a burocracia toda e lidar com a parte hierárquica”, afirma.
O caso que mais o marcou, e já era comandante do posto, foi o de um pai que violava as filhas. Um caso amplamente falado na comunicação social e que o chocou. Outro dos episódios mais marcantes foi de um homem que se suicidou e lhe deixou uma carta a pedir desculpa porque lhe tinha mentido: “Foi de uma coragem incalculável ter posto termo à vida e ainda hoje me lembro do senhor caído, quando passo naquele sitio. Foi uma decisão estúpida mas ao mesmo tempo de coragem. Tive acompanhamento psicológico mas ultrapassei. O filho do senhor descansou-me e disse que a culpa não era minha, que tinha feito o meu trabalho”.

Vítima das denúncias anónimas
O militar admite que o mais detestável ao longo da carreira são as denúncias anónimas, muitas vezes feitas por vingança. “Durante estes anos devo ter tido talvez 50 processos disciplinares e de averiguações por mentiras e inverdades. Bastava uma carta anónima a dizer que era corrupto para espoletar um processo. É revoltante, mas não há nada a fazer”.
Para José Pereira, a nova geração de guardas não está preparada mentalmente para o contacto com o cidadão e está mais distante. Antigamente, as patrulhas eram feitas a pé e tinham como finalidade falar com as pessoas e ter contactos. Hoje dificilmente isso acontece, a não ser que os mais novos estejam acompanhados de um colega mais antigo ou do comandante.
Para além da perda de contacto pessoal, os guardas vêem-se embrulhados em burocracias. “A principal preocupação é carregar bases de dados e não com o cidadão. As pessoas depois só vêem a Guarda na operação stop quando tinham de ver-nos como um parceiro e para resolver problemas”. Quem hoje vai para a GNR entra com um espírito inicial reivindicativo. Gozam os dias a que têm direito porque foram pais ou porque se vão casar. As condições antes eram piores.
José Pereira saiu da GNR mas não parou. Faz embelezamentos em relva sintética e jardinagem porque tem uma empresa de jardinagem e manutenção de jardins com outro sócio. Mais do que a questão financeira é um motivo para se levantar todos os dias. Duas a três vezes por mês vai para Orca, onde tem família. Este ano está encarregue de organizar as festas da aldeia. “Sempre tive apoio da minha família, nunca me cobraram nada. Era a missão que eu tinha e elas compreendiam”, conclui.

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