Tradições | 30-12-2023 13:20

Serranos, Campinos e Bairrões - Locais e Ambientes - Divertimentos

Serranos, Campinos e Bairrões - Locais e Ambientes - Divertimentos

Houve em Santarém um cortador, filósofo a seu modo, que matava o gado conforme os dias de cinema que houvesse na semana. Andava sempre em dia com os espetáculos públicos.

Locais e Ambientes - Divertimentos1

Podemos dizer afoitamente que, tanto ao norte, como ao sul, como no centro do país, nunca o povo se divertiu mais, porque nunca teve época em que tanto necessitasse divertir-se como agora. A vida são dois dias; e que amargurados dias! Portanto, para esquecer, muitas vezes, a miséria que entra nos lares, há apenas uma forma: embriagarem-se, aturdirem-se, encharcarem-se em divertimentos!

Houve em Santarém um cortador, filósofo a seu modo, que matava o gado conforme os dias de cinema que houvesse na semana. Andava sempre em dia com os espetáculos públicos. Para as segundas-feiras e para a sextas, não se preocupava em guardar qualquer peça de carne, porque não tinha quem lha comprasse; e, se houvesse cinema ou teatro mais vezes na semana, reduzia as matanças, porque já sabia que as vendas seriam fraquíssimas. Porventura não precisava o povo de se alimentar nos dias seguintes aos dos divertimentos?... Sem dúvida; mas não comia; passava mal, sujeitava-se a qualquer caldivana, mas que não faltasse para o bilhete do cinema ou para a entrada no campo do desafio...

Mas abstraindo dos jogos predominantes, e os cinemas e as excursões no verão, os ribatejanos divertem-se muito mais do que os homens do norte; porque, por cá, também há romarias. Não metem zé-pereira nem violas braguesas, mas ainda é vulgar a gaita de foles e competente tambor; e, se não está já tanto em uso este pitoresco instrumento que ainda faz as delícias do povo galego e vasco, na vizinha Espanha, é pela abundância de filarmónicas que há por estas povoações.

Não há muitos anos, contavam-se, só no concelho de Torres Novas, doze filarmónicas, e todas de certa nomeada. Teve fama a do Pedrogão, a dos Riachos, que, não sendo sede de freguesia, chegou a ter duas bandas, a da Meia-Via e a do
Oiteiro-Grande, e outras. Bailes campestres fazem-se por cá com certa frequência; e tiveram fama os arraiais do Ribatejo, no tempo em que havia quem dançasse fandango com uma garrafa sobre a cabeça. Bons tempos!

Tudo isto, porém, foi desbancado pelos diferentes jogos de bola que até se encarregaram de fazer esquecer as esperas de toiros, os apartes de gado, as tentas e a próprias touradas. Nem todos perderam com isso: ganharam os sapateiros e os toiros; e os médicos em certos casos.

Há quem se lembre com saudade da romaria da Senhora da Saúde, com o seu interminável cortejo de carros de bois armados e enfeitados ao jeito andaluz, uma que se fazia aqui às abas, de Santarém, outra no antigo concelho de Alcanede; quem se não esqueça das tardes da Sra. da Boa-Morte, ali ao pé de Vila-Franca-de-Xira, de intermináveis peregrinações a Santa Quitéria de Meca, no tempo em que o país andava infestado de cães danados, porque bastava que as pessoas mordidas não morressem antes de transpor os muros do adro da milagrosa santa, para nada terem a recear das malignas mordeduras.

Sobretudo, as feiras do Ribatejo apresentavam-nos quadros de muito maior movimento e mais cor que as romarias do norte. Mas até isso mesmo está decadente por cá. A viação mecânica pôs de parte os cavalos; e se não fossem as necessidades dos bois para a lavoira e dos machos e burros para auxiliares de gente pobre, nada haveria já que justificar a existência das feiras que perderam o seu antigo ar garrido, a sua estridência, o seu movimento, que atraíam às terras
ribatejanas gente de toda a parte.

Mas o povo diverte-se… Quem o observar superficialmente chega a convencer-se que a sua vida decorre num mar de felicidade e riqueza!

1 Escrito por Francisco Serra Frazão e publicado no Primeiro de Janeiro de 16 de março de 1940.

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